Educação e Covid19
Todos os que acompanham o Anuário Brasileiro da Educação Básica sabem que sua organização se sustenta sobre um eixo editorial e um foco principal: o eixo editorial obedece às metas do Plano Nacional de Educação (PNE); e o foco está pautado diligentemente no desafio central da Educação brasileira – dar conta de sua intrínseca e imensa iniquidade para que crianças e jovens avancem na aprendizagem.
Ao longo das edições, temos acompanhado o esforço da sociedade brasileira para melhorar os resultados e reduzir, no tempo de vigência do PNE (2014 – 2024), as profundas distâncias entre as oportunidades para crianças, adolescentes, jovens e adultos.
Contudo, em 2020, o Anuário deve refletir, no seu texto de abertura, uma abrupta e inesperada guinada na história. A pandemia da Covid-19, que impactará, por tempo indeterminado e de maneira inédita, a presença humana no planeta, será um marco, também, na história da Educação.
A crise global que interrompeu, criou ou acelerou tantas tendências sociais, veio para se tornar um potencial catalisador das diferenças de oportunidades de aprendizagem de qualidade para alunos pobres e ricos, de redes públicas e privadas, entre pretos, pardos e brancos, nas diferentes regiões do País.
Ocorre que a pandemia, aliada ao vírus da desigualdade social, provavelmente provocará um tsunami na Educação, cujo impacto apenas poderá ser capturado pelas estatísticas disponíveis ao longo dos próximos anos.
As primeiras ondas puderam ser percebidas desde o início do isolamento social: enquanto escolas privadas e algumas redes públicas conseguiram organizar rapidamente a oferta de ensino remoto, grande parte dos alunos brasileiros ficou em casa sem a presença da escola por um longo período. Assim, meses de tempo educativo foram acrescentados às diferenças então existentes. Mas o impacto também se deu e dará no âmbito da nutrição, da saúde, do trabalho infantil, da evasão e nas diversas dimensões da vida de crianças e adolescentes. Diante da impossibilidade do uso de fontes primárias para leituras mais detalhadas, pois, só a partir de 2021, começarão a ser disponibilizadas pelos órgãos oficiais, pela primeira vez, o texto de abertura do Anuário embasará suas análises também com alguns dados preliminares ou de outras origens, que permitirão esboçar uma primeira avaliação do impacto causado pela Covid-19 no sistema educacional brasileiro.
Necessariamente, os gestores públicos terão de se debruçar sobre o tema, para compreender e se antecipar aos efeitos mais graves da pandemia sobre a Educação, inclusive acompanhando exemplos de outros países e as políticas mitigadoras adotadas.
No contexto global, a Unesco estimou que 1,5 bilhão de crianças e adolescentes ficaram sem aulas como efeito direto da Covid-19. Em abril, segundo esse organismo internacional, estavam temporariamente fora da escola 91% do total de alunos do mundo e mais de 95% da América Latina.
A elevação da desigualdade é uma realidade para países ricos e pobres, e essa preocupação vem sendo reforçada pela Unesco e pela Unicef.
A partir de diferentes pesquisas internacionais, feitas após situações de catástrofes e epidemias, o Instituto Sonho Grande divulgou, em junho de 2020, informações que permitem antecipar a gravidade desse impacto. Conforme os dados levantados, crianças que deixam as escolas durante crises desse porte têm probabilidade 30% menor de continuarem os estudos. O surto de Ebola na Guiné, entre 2013 e 2016, elevou em 15% a evasão escolar. Da mesma forma, entre os efeitos colaterais da gripe espanhola, no início do século passado, esteve a queda na frequência escolar.
No Brasil, o movimento Todos pela Educação lançou um conjunto de notas técnicas, desde o início da crise, buscando qualificar o debate público sobre o tema, em um momento em que a informação e a Educação, mais do que nunca, estão entre as principais armas contra o vírus.
Tão logo as escolas foram fechadas, estabeleceu-se um debate sobre o conceito de Educação a distância, que não se resume à Educação remota, e muitas instituições chegaram a se posicionar contra essa oferta.
A Nota Técnica "Ensino a Distância na Educação Básica frente à pandemia da Covid-19”, divulgada em abril, defendeu o uso de diferentes modalidades de Educação a Distância como alternativa possível para manter as atividades de ensino e aprendizagem em uma situação de emergência, e acusou a necessidade, desde o primeiro momento, de se planejar o retorno às aulas com estratégias específicas para recuperar os níveis de aprendizagem esperada, pois defasagens certamente existiriam.
Como a nota alertava, as atividades remotas, e até mesmo aquelas mais bem estruturadas na modalidade Educação a Distância, não conseguiriam substituir de forma equivalente a experiência escolar presencial.
“A literatura baseada em evidências mostra que alunos que têm atividades totalmente a distância aprendem menos do que aqueles com a vivência presencial nas escolas, mesmo levando em conta outros fatores que poderiam afetar o desempenho acadêmico. Dessa forma, é preciso ter expectativas realistas quanto às diversas soluções existentes, sabendo que elas são importantes alternativas no atual momento, mas não suprirão todas as necessidades acadêmicas esperadas e previstas nos currículos”, informava a nota.
Entre as suas mensagens principais, estava, também, o alerta para a opção por estratégias para mitigar as condições heterogêneas de acesso.
“Para enfrentar o risco da ampliação de desigualdades, ao lançar mão de estratégias de ensino a distância, é preciso entender que a disposição de recursos tecnológicos é heterogênea entre os alunos e que aqueles que já têm desempenho acadêmico melhor tendem a se beneficiar mais das soluções tecnológicas”.
A existência de recursos tecnológicos nos domicílios rapidamente se configurou como um fator de exclusão. Os dados mais recentes sobre o acesso a equipamentos de Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC) mostram que 99% dos domicílios da classe A tem acesso à internet, item disponível para apenas 40% dos domicílios das classes D e E. Por isso, a Nota Técnica lembrava a importância de se considerar outras ferramentas, como o próprio uso da TV, presente em mais de 70 milhões de domicílios e em 92% dos lares das classes D e E.
À medida que a pandemia da Covid-19 se interiorizava, por todos os estados brasileiros, ficava claro que os governos municipais e estaduais teriam de se preparar para um retorno às aulas complexo e com apoio intersetorial, sem se esquecer de que será necessário investir, também, na formação intensiva dos professores para esse momento, seja no uso de ferramentas tecnológicas, seja para o acolhimento dos alunos.
As experiências aprendidas nesta própria pandemia, bem como em outros eventos catastróficos, trazem evidências de que os efeitos adversos vão além do impacto educativo.
Há questões emocionais, físicas e cognitivas que deverão ser observadas, em especial, pelo prolongado tempo de isolamento social, pela perda de entes queridos e outras consequências da doença.
Da mesma forma, os gestores devem assimilar a ideia de que não se trata de um retorno a um ponto conhecido, mas de retomada das aulas presenciais em um novo cenário sanitário, econômico, social, que exigirá uma ampla e também inédita articulação entre diferentes áreas e instâncias de governo – do municipal ao federal, da Educação à saúde, assistência social e outras esferas. Mais do que nunca, a existência de um Sistema Nacional de Educação mostra sua importância, pois tornaria muito mais ágeis e integradas as ações entre os entes federativos e o governo central.
Tudo isso torna necessária a máxima antecipação possível no planejamento para o reinício das atividades presenciais e na preparação para o futuro próximo. Trata-se de adotar um olhar de reconstrução que traz, inclusive, oportunidades de melhorias duradouras nos sistemas de gestão e na própria vida da escola.
Financiamento da Educação
A complexidade do quadro na área de Educação se torna exponencialmente maior quando se sabe que, à pandemia, se seguirá uma crise econômica de enormes proporções – justamente no período em que o Congresso Nacional debate a renovação do Fundeb.
“No caso do financiamento, a crise econômica que se instalará deverá trazer repercussões profundas ao setor educacional, ao reduzir a disponibilidade de recursos da União, dos Estados e dos Municípios. Assim, uma priorização de recursos para a Educação será a chave, em especial, no que diz respeito a transferências para as redes de ensino mais pobres e que atendem alunos em situações de maior vulnerabilidade. Nessa linha, entre outras questões, aprovar um novo Fundeb mais redistributivo – algo que se apresenta como grande possibilidade no atual momento – deve ser entendido como medida urgente na pauta do Congresso”, informa a Nota Técnica "O retorno às aulas presenciais no contexto da pandemia da Covid-19”, divulgada, em maio, pelo Todos Pela Educação.
Ainda há tempo para agir, com medidas que podem ser também aceleradas pela urgência vivida, em um acordo nacional que priorize a Educação.
É possível, por exemplo, fazer com que a pauta do Sistema Nacional de Educação ganhe força. O Sistema Único de Saúde (SUS) mostrou-se um ótimo exemplo para a sociedade do avanço das instituições quando se mostram capazes de coordenar ações e instituir regramentos claros, em uma estrutura de governança federativa e com pactos sobre políticas estruturantes.
Em junho, o movimento Todos pela Educação e o Instituto Unibanco publicaram o estudo "Covid-19: Impacto Fiscal na Educação Básica”, com o objetivo de lançar luzes ao debate que precisa acontecer sobre o impacto da pandemia no financiamento à Educação, em 2020.
O estudo concentrou-se nas redes estaduais, utilizando dados do Tesouro Nacional, informações consolidadas das receitas tributárias de abril e maio, além de estimativas de especialistas para realizar uma projeção dos tributos vinculados à Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), em 2020.
As estimativas de perdas para as redes estaduais ficam entre R$ 9 bilhões e R$ 28 bilhões em tributos vinculados à MDE, a depender do cenário de crise econômica, informa o estudo.
Concomitantemente à queda na arrecadação tributária e dos repasses do governo federal, os Estados tiveram de realizar gastos imprevistos com a migração das aulas presenciais para a Educação remota, com a consequente reorganização pedagógica, bem como adotar novas medidas para o atendimento às crianças e jovens – entre elas, a entrega de material impresso e a transmissão de conteúdos pela TV local.
A partir de um levantamento com 22 redes estaduais de Educação, o estudo mostrou que quase todas as Unidades da Federação adotaram até 15 soluções para o enfrentamento das consequências da pandemia, a um custo de, pelo menos, R$ 2 bilhões para 2020. Revela, também, que 63% das redes estaduais organizaram aulas on-line ao vivo e 45% patrocinaram pacote de dados de internet para alunos e docentes.
O retorno às aulas e a consequente adoção de novos gastos com os protocolos sanitários trarão novas despesas, não calculadas até então.
“Conforme o estudo, por fim, "para evitar o possível colapso financeiro das redes públicas de Educação, com potencial carência de recursos da ordem de R$ 30 bilhões no conjunto das redes estaduais, o Brasil precisará de ações legislativas e executivas que contemplem a otimização do uso de recursos nas Secretarias de Educação, a vinculação à Educação de 25% dos recursos de socorros fiscais em razão de queda tributária, a preservação e eventual aumento/reorientação do orçamento do Ministério da Educação (MEC) para assistir financeiramente Estados e Municípios, a aprovação urgente do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e, se necessário, a realização de socorro emergencial da União direcionado à Educação dos entes subnacionais”.
Este é o cenário que, até o fechamento desta edição (junho de 2020), coloca em suspenso qualquer previsão para o impacto da pandemia da Covid-19 na Educação brasileira. Ante a ameaça de um retrocesso brutal em relação a todos os avanços arduamente conquistados pela sociedade brasileira, é preciso que se construa de forma urgente um pacto nacional pela Educação, baseado em propostas articuladas em diálogo por governos, casas legislativas, Conselhos da Educação, universidades, organizações sociais e outros atores da sociedade civil.
Se a pandemia trouxe um imenso ponto de interrogação para todos os países, também deixou expressa a ideia de que o futuro é uma construção humana, que deve ser alicerçada em evidências e conhecimento científico, bem como em novos contratos sociais. Muitos países já iniciaram sua retomada, e urge que o Brasil também prove sua capacidade de se viabilizar neste mundo incerto em que, como disse o pesquisador português Antônio Nóvoa, a Educação precisa ser considerada pela humanidade como um bem comum.